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  • Vera Cristina

#dia 22 - Uma carta que levou muitos anos para chegar

Toda família tem alguém chato! Na minha perspectiva, não conheço família sem um chato, pelo menos. E em tempos de grupos de Whatsapp isso não melhorou muito. Até ao contrário, essa tecnologia deu uma ferramenta terrível para essas pessoas! Na minha família, entre outros, tenho a tia Cidinha. Tia é maneira respeitosa de chamá-la porque, na verdade, ela é prima da minha mãe, por parte do meu avô. Ela manda vídeos, figurinhas, mas o pior de tudo é quando começam as demandas. Estes dias, com todos dentro de casa, ela não tem problemas em fazer pedidos — “Clarinha, você que pode sair, vai na casa da tia Fininha e me traz umas alfaces da casa dela?”; “Pedrinho, passa na farmácia e pega meus remédios? Imagina que eles querem me cobrar a entrega!”. Desse jeito mesmo, sem por favor ou obrigada. E assim vai ... Como estou no grupo de risco, estava sendo poupado. Estava, até dois dias atrás. Do nada, tia Cidinha me manda um pedido, quase uma ordem: “Lulinha, meu sobrinho favorito, você que está com as coisas da sua mãe, veja lá se não tem uma carta dela para meu falecido irmão Cadu; minha mãezinha velhinha tem insistido muito nisto, meu querido.” Detesto quando ela abusa dessa doçura falsa, para nos obrigar a fazer o que ela quer.

E lá fui eu, abrir o quarto das coisas que não deveriam sair do passado, mexer nas caixas da minha mãe. O problema não era só a poeira —aproveitei as máscaras da pandemia para me proteger. O ponto era me intrometer em assuntos da minha mãe, que ela mesma não quis enfrentar em vida. Como tia Cidinha, ou sua mãe tia Benê, souberam dessa carta eu não sei. Talvez uma revelação que tia Cidinha tenha extraído de minha mãe em seus momentos finais.

Infelizmente, achei a carta. Tia Cidinha pediu que abrisse o envelope, escaneasse o conteúdo para que tia Benê, em seus últimos momentos de lucidez, pudesse entender por que minha mãe, alguém tão querida da família, teria recusado o pedido de casamento de seu primogênito, o lindo Cadu e evitado uma conexão maior na família.

A carta, nunca enviada, sabe-se lá por que, era curta. Sem corações desenhados ou botões secos de rosa anexados. Cheirava a tempos antigos, de não aceitação de diferenças de normas e à moralismo. Talvez tia Benê continuasse sem entender, mas eu, mesmo um pouco velho, percebi que minha mãe recusou o pedido para evitar se ligar a alguém que não seria feliz “por ir contra sua natureza mais íntima”, “ter outros desejos” que ela não conseguiria satisfazer ou ser algo “de aparência”. E assim, laconicamente, disse não ao bonitão, que se mudou para o Rio de Janeiro, terra de costumes mais abertos, dividindo, até o final da vida, um apartamento com um ex-colega de turma. E minha mãe pôde voltar seu olhar para o Zezinho, vizinho de muro, com quem adorava conversar sobre cinema, sonhos e problemas de família. Acho que só o poupou das conversas das tias Benê e Cidinha.

23.vii.2020 – hora do almoço



Fotos: celular com tela de aplicativo (fonte: neilpatel.com); armário com caixas (fonte: thriftydecorchick.com)

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