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  • Vera Cristina

#dia 29 - Ver além dos olhos

Professora Laurinha estava um pouco cansada. Cansada de dar tanta aula, não ter sua dedicação reconhecida pelos alunos, colegas ou a diretora. Pensou até em se aposentar, mas o dinheiro extra que vinha das gratificações a fez continuar. Pelo menos, pôde escolher e preferiu as turmas do ensino médio. Mais preocupados com o futuro, o vestibular, certamente iriam ouvir suas aulas com atenção. Mesmo sendo português, essa é uma matéria importante no vestibular.

Gina ficou exultante. Sim, essa era a palavra. Ela, que adorava palavras, sons e ritmo, finalmente conseguira algumas aulas, com a semi-aposentadoria da velha professora. Não pegou todas as salas, como novata deram para ela as salas com as “últimas letras do alfabeto”, ou seja, as salas com os alunos mais difíceis.

E lá foi ela, muitas tatuagens no corpo, cabelo colorido e muitas ideias, além da vontade de compartilhar seu amor pela língua materna.

Primeiro dia de aula, Gina chegou correndo, quase atrasada, passou correndo pela sala dos professores, pegou suas cadernetas na secretaria e se foi pelo enorme corredor, toc, toc, toc do salto da sandália, buscando sua sala. Um aluno, também com tatuagens e, mais ainda, piercings e afastadores, foi andando ao seu lado e ofereceu-se para ajudar. Talvez a visse como uma aluna nova ...

- Oi, querido. Preciso chegar na 7ª E, sabe onde fica, por favor? Minha aula vai começar daqui a 2 minutos ...

- Nossa, vou para lá também. Sou o Diegão e você, Gibizinho?

- Sou a professora Gina, a nova professora de português!

- Ihh, foi mal, prófe! A sala é aqui ...

Entraram, com Diegão gesticulando, tentando avisar a turma e evitar problemas logo no primeiro dia.

Gina se apresentou. Andou pela sala, olhou para cada aluno, aluna, enquanto iam se apresentando. Depois, colocou “Língua”, de Caetano Veloso, cantada por ele e Elza Soares, para explicar sua paixão pelo português ... “Minha pátria é minha língua... O que quer, o que pode esta língua?”

A aula era curta. Declamou uma parte de “Tabacaria”, de Alberto de Campos, seu poeta favorito. E pediu que cada um trouxesse algo, uma poesia querida, para a próxima aula.

Uma aluna disparou do fundo da sala:

- Vai dar certo, não, fêssora! Aqui ninguém gosta dessas coisas. Guarda isso lá para a 7ª A.

Mas eles eram os alunos dela. E Gina não desistia fácil.

- Gente, poesia está em todo lugar. Na nossa cabeça, nas músicas ... Vocês gostam de rap? (Ao ver que balançavam as cabeças, afirmativamente, continuou). Então, rap é poesia, está valendo.

As semanas passaram. As conversas na sala dos professores começaram a ter Gina como foco. Como ela tinha conseguido aquilo? Controlar as piores salas? Bem, mas também vir fantasiada de anos 80 e tocar música fica fácil – zombou Dona Dirce, de Geografia. Ah, e todas aquelas tatuagens ... adicionou Luizinho, de Matemática. Só a Vivian, também com tatuagens, mas de manga longa para evitar olhares e julgamentos, só ela sabia que havia algo mais. No modo como Gina conversava e ouvia os alunos. No respeito à cultura de cada um. No jeito franco de ser ela mesma.

E viu aí, também, um caminho para si mesma.

29.vii.2020 – meio da tarde


Fotos: braço tatuado (fonte: danieldangraf); tabacaria (fonte: tabacaria monumental, afzal-H); Fernando Pessoa (fonte: ventosdalusofonia.wordpress)

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