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  • Vera Cristina

#dia 28 - Com uma agenda em mãos que não é minha

Esta é uma estória antiga, da época em que não havia celulares Smartphones ou Whatsapp, em que as pessoas anotavam coisas importantes em agendas de papel. Hoje, esta estória não teria acontecido e minha vida, provavelmente, seria outra. Calma, vocês vão entender no final ...

Era 1981 e eu tentava me livrar da disciplina “Fisiologia Animal”. Cursava Biologia lá na USP, era vegetariano e me identificava com a causa animal. Nas provas teóricas dessa matéria até ia bem, mas nas práticas ... E, assim, pela terceira vez tentava ser aprovado e conseguir meu diploma, um emprego e a independência econômica dos meus pais.

Naquele dia, em especial, a aula estava um caos. Normalmente, as práticas eram chamadas de aulas de “DOI-CODI”, e para quem não sabe o que isso significa, tem uma nota explicativa ao final ...

Naquela fatídica 5ª feira, os professores queriam demonstrar os arcos reflexos usando sapos, que deveriam ter a ligação entre o cérebro e a coluna vertebral destruída, na técnica conhecida como “espinhalar o sapo” —para nós alunos uma demonstração inútil e desrespeitosa para com os animais. Eu estava em um grupo com mais 4 garotas e um garoto, que era o único com coragem para tal ato.

O professor Almeida queria, no entanto, que todos os alunos aprendessem a técnica e obrigou Clarinha a fazer aquilo. Ou melhor, tentar fazer. Ela tinha nojo de sapos, horror ao sofrimento animal e asco do professor, que tentava tocar nos seios das alunas sempre que houvesse um descuido. Resultado: ela gritou, o sapo escapou de sua mão várias vezes e, na última, saiu pulando pelas bancadas, alvoroçando todos os grupos. Uma zona total!

Claro que a aula acabou antes e fomos expulsos do laboratório, com pouco tempo para pegarmos nossas coisas. E foi aí, realmente, que esta estória começou ...

Saí do prédio e ao olhar melhor meus cadernos, notei um caderninho com flores e gatinhos que não era compatível com meu perfil másculo, palmeirense e natureba. Era a agenda da Clarinha! A Clarinha dos meus sonhos, nadando nas águas límpidas de Trindade, fazendo trilha em S. Tomé das Letras e, claro, fazendo amor, lindo, doce e selvagem comigo!

Sem perceber, fui olhar seus compromissos e vi que ela teria consulta médica no final daquele dia. Até havia anotado coisas para perguntar à sua médica. O que eu devia fazer? Ela já tinha ido embora.

Sem internet ou zapzap, me restou olhar se tinha fichas para usar o orelhão (sim, esse era o “celular” da época!) e avisar minha musa que estava com sua agenda. Por sorte, seu telefone estava marcado na primeira página. Consigo ligar e a mãe dela atende. Clarinha ainda não havia voltado. Explico a situação e sua mãe, muito gentil, me pergunta se posso levar a agenda à sua casa e me convida para o almoço. Oh, céus, será que os deuses estavam do meu lado?

Corro para o ponto de ônibus (nada de Uber nessa época, gente!) e peço carona. Rapidamente, um rapaz da FAU para e, para minha sorte, vai justamente perto da casa da Clarinha.

Para encurtar essa estória de mais de 40 anos, aquele foi o primeiro de muitos almoços deliciosos naquela casa. Como retribuição, Clarinha me ajudou a passar na temida disciplina e eu a ajudei em Física. Um mês depois, começamos a namorar e, dois anos depois, nos casamos. Hoje, ela está aqui ao meu lado, curiosa, olhando por cima do meu ombro, para saber do que estou falando. Eu digo que é sobre acasos, sapos, flores e gatinhos que nos aproximaram.

*DOI-CODI: sigla de um órgão, subordinado ao Exército, de repressão do governo brasileiro, que ficava em um casarão em S. Paulo, e que torturava pessoas que se opunham ao governo militar, na época da ditadura.

28.vii.2020 - manhã, experimentando outras vidas, lugares de fala, com um pouco da realidade vivida.


Fotos: Sapo (fonte: enciclopédia Britânica); agenda com gatinhos (fonte: finaideia.com.br)


Fotos: orelhão (fonte: Pinterest); fichas para uso do telefone público (fonte: mercado livre)

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