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  • Vera Cristina

#dia 24 - Se eu não pudesse voltar pra casa?

Naquela noite, até os vizinhos estranharam os barulhos no apartamento dos Schöeringer. Sempre tão quietos, tão educados, seu Pedro tão compenetrado no elevador, mas, naquela noite, ouviram gritos, frases ditas altas e com raiva, muita raiva guardada. E bater de portas. E choro de mulher. Estranharam ainda mais. Dona Amelinha, sempre sorridente, seria capaz de chorar soluçando?

Ela até agora não sabe como tudo começou. Teria sido o telefonema, tão simpático, de seu ex-colega, Luiz Carlos, que desencadeara aquele acesso no Pedro? Ou teria sido o fato de sua voz ter sido gentil demais com o não apenas ex-colega, mas primeiro namorado, primeiro homem que, de forma inesperada, ligou para perguntar de um outro conhecido? E falaram por bastante tempo. Pedro Ernesto ficou incomodado; mais do que isso, reclamou que estava atrapalhando sua conferência on-line.

À noite, voltaram ao assunto e aí tudo desandou. Trinta anos de conversas não tidas, assuntos não resolvidos e sacrifícios não aceitos vieram de uma vez só. Como as águas do Rio Tamanduateí de sua infância que, no verão, saía do leito e ia varrendo a várzea e invadindo as casas que teimaram em construir em sua área.

Naquela noite, foi pior. Tudo se falou e nada se resolveu. Pior ainda, ele abriu a porta e mandou que ela saísse imediatamente. “Como assim, sair da minha casa nesta hora da noite, Pedro?” Ele, irredutível, deu duas horas e nada mais. Saiu, sem máscara, batendo a porta, reforçando o aviso. Duas horas.

Como decidir o que é importante para a sua vida, da sua vida, em apenas duas horas? Nesse momento, seu lado de mulher prática falou mais alto e Amelinha começou a olhar à volta e recolher o que poderia e deveria levar consigo naquele momento: roupas, documentos, fotos dos filhos, toalha de banho, lençol, cobertor, a cafeteira italiana (“ele não usa e não consigo começar meu dia sem café”), umas bolachinhas, os remédios, Tablet, carregador de celular, alguma planta (?) e é isso. Colocar tudo no carro—"ainda bem que eu insisti em que o carro grande ficasse comigo”— e sair. Uma hora e 55 minutos.

Para onde ir? Aonde poderia ficar? Ligou para os filhos, mas o pai já havia feito isso e, usando seu dom de chantageador emocional, tirou dela essa possibilidade. Hotel na quarentena, nem pensar.

E assim foram 3 dias e noites, passados no carro, dormindo no carro, usando banheiro dos supermercados e comendo coisas compradas em drive-thru. Sem ponto para onde retornar. Sem casa, sem lar. Só um vazio, um espaço negro que sugava sua energia.

Então, ela abriu o porta-luvas para buscar algo e achou seu portal para uma outra vida— as chaves da chácara. Tanto tempo sem ir até lá que havia esquecido do lugar. Também, havia sido o local de recolhimento de Pedro Ernesto quando precisou preparar-se para o concurso de professor titular. Não a queria por perto. Ela só ia até lá para levar a comida congelada e fazer uma breve limpeza no lugar. Parelheiros nunca pareceu um lugar tão mágico como naquele momento.

A casa estava uma bagunça, contrariando o que o marido havia dito ao voltar de lá, 3 anos antes, de que tudo estava “na mais perfeita ordem”. A cama ainda desarrumada, com os lençóis usados, a geladeira ligada e lixo nas latas e em alguns cantos da casa. Mas o chuveiro funcionava e tinha gás para o fogão. E, na geladeira, quase vazia, havia pó de café, sal e açúcar. Quase de modo automático, buscou a cafeteira italiana, preparou o café e foi sentar-se no quintal.

Olhou o mato alto, rebelde, crescendo. Mas viu as árvores com frutas: laranja, limão, jabuticaba, pitanga. E ouviu passarinhos conversando. E viu possibilidades. Já era um começo. Um bom começo.


24.vii.2020 – manhã, e eis que foi a Amelinha quem deu voz a esta estória.


Fotos: entrada de apartamento (fonte: internet); chaves (fonte: pxfuel.com); quintal com mesa (fonte: planete-deco.fr)

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