Em casa, quando eu era criança, gostávamos de fazer bagunça, brincar muito. Era só voltarmos da escola, já tirávamos o uniforme, comíamos algo e, depois da lição de casa feita—exigência draconiana da minha mãe— podíamos brincar muito, o quanto aguentássemos.
Nosso quintal era como um portal para um mundo maravilhoso. Tinha algumas árvores, e elas se tornavam castelos com altas torres, montanhas íngremes a serem escaladas ou, simplesmente, um lugar para sentar-se em um tronco, deixando as pernas balançando livremente, enquanto comíamos alguma fruta.
Lá em casa, as meninas brincavam com bolinha de gude, empinavam pipas, andavam no carrinho de rolimã e nunca se importavam do vestido com barro ou o joelho ralado. E os meninos eram livres para se juntarem às meninas e fazerem comidinhas de barro, levarem as bonecas para passear no carrinho ou brincar de fazer penteados nos longos cabelos cacheados das meninas ...
Minha mãe gerenciava tudo, lá pela janela da cozinha ou, melhor ainda, sentada em um banco, à sombra de alguma árvore. Enquanto nos olhava, ela lia um livro—às vezes, declamava em voz alta alguma poesia! — ou, então escrevia. Minha mãe tinha muuuuitos cadernos com seus escritos, e ela dizia que, assim, colocava seus pensamentos em ordem! De vez em quando, algum pedacinho de barro acabava em uma das folhas do seu caderno, por conta de uma guerra entre os vandalões e os abacaxeiros (nomes das tribos em que nos dividíamos para brincar de luta). Na primeira vez, ela até tentou ficar brava, mas resolveu fazer um desenho usando aquela tinta incomum, e foi assim que começou a ilustrar, também, as suas histórias.
Tudo era muito solto, muito livre, enquanto o sol estava forte no céu. Mas aí, enquanto ele ia se aprontando para descansar, mamãe se levantava correndo do banco e nos colocava para dentro! Todos devíamos nos limpar e tomar banho rápido para ficarmos quietos na sala. Sim, quando ouvíssemos a chave girando na fechadura, era o sinal. Nenhuma correria mais, nem gritarias, ou cantos de guerra. Nenhuma almofada fora do lugar, nem um caderno sem a lição completa.
Quando papai chegava, sempre cansado e mal humorado, ninguém corria pelo corredor, escorregando com seus chinelos. Tudo era um silêncio ordeiro para que ele, então, pudesse usufruir da sua casa—para isso trabalhava, dizia alto— e da sua família. Não a família das brincadeiras no quintal, mas aquela dos chinelinhos silenciosos.
(a continuar, de certa forma)
06.iii.2021
- Penso que um dia as casas de família foram assim. Ainda bem que temos El Niño e La Niña, que mudam as condições climáticas fora e dentro dos lares.
- escrito como um “esquenta” para o dia 8 de março!
Foto: chave na porta (fonte: Unplash, by Jaye Haych)
Foto: chinelos (fonte: Unplash, by Wu Yi)
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