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  • Vera Cristina

Capítulo 4: Raios e faíscas


Fotos: pote com luz (Garidy Sanders, unsplash), Coração (Pinterest), potes (Elena Mozhvilo, unsplash)



Estes dias, ouvindo um podcast, percebi o quanto esta minha busca é mais difundida entre as pessoas do que eu pensava. Muitas vezes é assim, nos julgamos únicos— na nossa dor, nas nossas descobertas e buscas pessoais— mas, na verdade, esse é o caminho dos seres humanos, em algum momento nossa alma clama por ser ouvida. O convidado do podcast falava em como decidiu iniciar um período sabático, não para viajar ao exterior ou fazer algo extraordinário, mas para abrir um quarto interno com suas angústias, seus medos e esqueletos. E, naquele momento, me percebi parte desse grupo de humanos que têm a rara oportunidade de poder fazer isso.

Alguns de nós ainda estão tão envolvidos em atividades do cotidiano que, mesmo se quisessem, teriam dificuldades para fazê-lo, como falta de tempo, de força emocional ou estrutura da casa. Para alguns, são os filhos muito pequenos, ou o(a) companheiro(a) pouco participativo na casa, a falta de segurança financeira, questões emocionais profundas, questões de saúde, enfim, a vida não permite. E, por isso, sou grata à vida que me mostrou aquela chave embaixo do vaso e, desse modo, pude entrar no meu quarto escondido e olhar de perto os meus aspectos “sombrios”.

Ao caminhar pelo quintal, girando na mão a chave do quarto com meu armário de ingredientes especiais, fico pensando para qual pote – e aspecto – olhar. Sei que não será aquele que gostaria, mas o que, de algum modo, durante a noite, talvez por ação de ratos, pelo balançar do armário pelas corujas, sorrateiramente se aproximou da borda, colocando-se em destaque para ser enfrentado. E assim, vou revendo os potes, um a cada dia.

Entrei no quarto devagar e abri o armário com muito cuidado. Como previsto, um pote havia se deslocado durante a noite e estava bem à frente, na prateleira na altura dos meus olhos. Impossível fugir dele. O pote era grande e ao lado da etiqueta com o nome do ingrediente haviam lacinhos e pequenos corações cor-de-rosa. A fofura da embalagem não me enganava quanto ao seu conteúdo, até porque, lá dentro, a gosma brilhante produzia pequenos raios e faíscas. O título do frasco escrito em vermelho me preparava para os momentos seguintes. Respirei fundo para abrir e enfrentar seu conteúdo.

A raiva é assim. Se não estamos sempre atentos, qualquer coisa pode abrir este pote “fofo”. Um objeto deixado fora de lugar por outro morador da casa – um copo, sapatos, escova de cabelo, o prato sem tirar da mesa após a refeição ... a lista é longa e só não é infinita porque os objetos na casa são finitos! Uma opinião nossa não levada em conta, nossos sentimentos desrespeitados. Tudo isso me atravessou quando abri aquele pote. Olhei para o seu interior e quis ver até o fundo. Talvez fosse minha imaginação, mas vi um esqueleto de lagartixa no meio daquela gosma marrom brilhante!

Balancei o frasco e o seu aroma fétido e picante me lembrou dos vários momentos em que quis controlar o mundo e as atitudes e reações alheias e falhei. Ou, pior, quando procurei evitar meus próprios sentimentos negativos e reações destemperadas, mas eles foram mais rápidos do que meu bom senso.

Raiva, para mim, está ligada à frustração e à falta de controle. Durante um tempo, muitos anos atrás, precisei ficar de repouso em casa. A vida me pôs “de castigo” e na dependência de outras pessoas para coisas muito básicas. Foi meu primeiro sabático “interno”. Aos poucos, fui aceitando que controlo pouquissimas coisas e está tudo bem. Que, felizmente, a vida vai seguir um rumo diferente do previsto e isto traz diversidade e riqueza interior. A criança interna, birrenta, foi aprendendo que não é a rainha deste espaço interno e que eu adulta, liderando, consigo fazer muito mais coisas legais e resolver situações difíceis sem gerar outros problemas.

Outro dia li que a raiva aparece quando algo não está bem ou quando nos sentios desrespeitados. Refletindo sobre isso, me parece que ela é válida quando se expressa como indignação, mas nunca de forma destemperada.

O conteúdo do pote, em si, não parece ser o problema, mas sim o uso que fazemos dele. No meu caso, vou usar um pouco como adubo para as minhas plantas, diluindo em bastante água. E você, como usa sua raiva de forma positiva?


Fotos: fogos de artifício (Meg Nielson, unsplash) e raios (Jeremy Thomas, unsplash)

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